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Sou o que sou, e não outra coisa |
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Por Sabrina Duran | |||||||||
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“Eu quero variar. Eu não quero ser eu”. Ouvi esta frase há sete anos, num ônibus, e sem querer. Enquanto pagava a passagem ao cobrador, uma mocinha jovem, de uns 20 anos talvez, fez esta afirmação a uma amiga. A frase tinha a força e o fastio típicos de um desabafo. Como estava perto da catraca, ouvi tudo nitidamente. O ônibus, embora lotado, estava mergulhado num silêncio abissal, o que permitiu que aquelas palavras reverberassem livremente por alguns segundos até serem diluídas em conversas que começavam a espocar aqui e ali.
Achei aquela afirmação tão pouco usual – para dizer o mínimo – que na hora peguei meu caderno de anotações e registrei: 17.03.1999 “Eu quero variar. Eu não quero ser eu”.
Quatro anos depois, durante uma aula de metafísica, aquela frase, com seu fastio ainda fresco na minha memória, ganhou sentido dentro de um contexto filosófico. A aula era sobre o primeiro princípio acerca do ente, ou seja, o princípio básico que caracteriza, em partes, tudo aquilo que existe: “É impossível ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”. Isso significa, grosso modo, que a essência de tudo o que existe não é contraditória.
Este princípio, também conhecido como princípio da não-contradição, estava, de alguma forma, na raiz da frase que ouvi no ônibus. Aquela moça, deixando entrever a insatisfação com a própria personalidade, buscava uma solução onde ela não existia: em uma outra personalidade, que não a dela, e que era pura ficção. Talvez até aquele fastio que percebi na sua voz não viesse tanto de sua insatisfação com o que ela era, mas sim da impossibilidade de ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, outra pessoa.
UMA COISA É UMA COISA... OUTRA COISA É OUTRA COISA
A primeira parte da frase que expressa o princípio da não-contradição (“É impossível ser e não ser”) foi proposta pelo filósofo grego Parmênides (540-470 a.C.). Mais de um século depois, Aristóteles (384-322 a.C.) matizou a proposição parmenídea com o “ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”. Para que o princípio fique mais tangível, darei dois exemplos bem simples: um homem não é um rato; um rato, por sua vez, é um não-homem. Uma cadeira totalmente azul não é amarela; ela até pode vir a ser amarela, caso seja tingida, mas não poderá ser totalmente azul e totalmente amarela ao mesmo tempo. E isso se aplica a tudo o que conhecemos. Numa versão mais “pop-contemporânea” – pedindo aqui uma grande licença poética – diríamos que “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.
Tudo isso parece muito óbvio, é verdade. Mas não é tão óbvio assim quando trasladamos o princípio da não-contradição para nossa vida pessoal e passamos a entendê-lo como coerência.
DISCURSO E PRÁTICA
No limite das considerações que farei nesse post, podemos entender a coerência, desde um ponto de vista comportamental e moral, como a compatibilidade entre discurso e prática, entre idéias e ações. Uma pessoa coerente, portanto, é aquela que tem convicções e age movida por elas. Não cabe aqui – por uma questão de foco e espaço – discutir a qualidade das convicções, embora essa discussão seja necessária para validar ou não as atitudes de uma pessoa (Hitler, por exemplo, acreditava na primazia da raça ariana; foi coerente com suas crenças – embora estas fossem objetivamente ruins – a ponto de cometer atrocidades em nome delas).
Para não diluirmos o foco – que é a coerência –, admitamos, então, que todas as convicções que citarmos aqui de modo hipotético são objetivamente boas.
Segundo o princípio da não-contradição dos entes, é possível dizer, de modo positivo, que a coerência é um atributo ontológico do homem, ou seja, faz parte da sua natureza. Esta, por sua vez, requer a coerência para estar completa.
Não é difícil perceber quão verdadeira é esta afirmação se destrinchamos um pouco algumas experiências do dia-a-dia. Uma pessoa, por exemplo, que nos afirme comungar de determinada convicção e, em seguida, nos mostre o contrário com seus atos, perderá, senão toda, pelo menos grande parte de sua credibilidade. Isso sem falar na sensação de repugnância, estranheza ou espanto que sua incoerência despertará em quem a contemplar. É como observar uma ferida no corpo: temos a sensação de que a ferida “não deveria” estar ali, pois é algo estranho, exterior, incompatível com o corpo humano que, intuímos, só é o que deve ser quando goza de saúde. A incoerência é para a alma humana o que a ferida é para o corpo.
Já a pessoa que expressa convicções e ações compatíveis entre si nos conduz à crença em suas palavras e é capaz de despertar admiração e uma certa tranqüilidade em quem nela busca apoio. E vou ainda mais longe. Recentemente escrevi uma reportagem sobre a importância dos bons líderes nas empresas. Conversando com o professor de uma faculdade paulista, descobri que um líder coerente é capaz de reter talentos nas companhias. Isso porque seu exemplo motiva os colaboradores a serem fiéis à empresa e os faz sentir orgulho de se submeterem a uma pessoa com esse atributo.
Em última análise, a pessoa coerente torna-se atraente por ser veraz. Em um artigo sobre a veracidade, o filósofo espanhol Julián Marías chega a ser poético ao falar das pessoas que detêm essa virtude. “É particularmente preciosa a existência de ´espíritos verazes`, cuja atitude consiste em uma irrefreável tendência à verdade. Há pessoas que necessitam da verdade para respirar, que se afogam sem ela, que a buscam incansavelmente (...). Podem ser pessoas muito modestas; creio que em sua maioria o sejam, entre outras razões, porque sua veracidade lhes impede de vangloriar-se. No melhor dos casos, são verazes espontaneamente, quase sem dar-se conta. Ante a presença da verdade se iluminam, às vezes revivem, se sentem em um ambiente respirável. Quando encontramos essas pessoas, recobramos a esperança no ser humano, sentimos confiança”.
MAS TAMBÉM SOMOS INCOERENTES
Se o princípio da não-contradição perpassa a essência de tudo aquilo que existe, como conseguimos – e não poucas vezes – ser contraditórios, incoerentes nas palavras e ações? Não há uma resposta simples para essa pergunta, pois são muitas as variáveis que influenciam nosso pensamento e conduta. Algumas vezes será a pressão do ambiente – ficar bem diante das pessoas, evitar um mal-estar moral, fugir a um compromisso – que nos levará a não agir de modo coerente. Outras vezes será a fraqueza ou a má qualidade das nossas convicções, incapazes de nos mover a uma atitude firme, ou mesmo as debilidades do nosso caráter – passíveis de serem curadas com o exercício das virtudes. Em outro momento, a ignorância poderá nos pregar uma peça: achamos que estamos sendo coerentes com alguma convicção mas, por não conhecermos a fundo a convicção ou as atitudes correspondentes, simplesmente erramos, trocamos os pés pelas mãos.
Quaisquer que sejam os motivos que explicam nossas incoerências, por trás de todos eles sempre estará a liberdade, atributo do qual apenas nós, seres humanos e racionais, podemos desfrutar. Em maior ou menor grau, sempre somos livres para agir ou não agir em conformidade com aquilo que pensamos. Isso significa que somos responsáveis por aquilo em que cremos e fazemos – desde que não haja, claro, uma coerção exterior, uma ameaça que independa da nossa vontade e que nos obrigue a agir como não queremos.
O fato de vivermos de modo incoerente tantas vezes não prova, de modo algum, que somos incapazes de atuar segundo o princípio da não-contradição que nos é próprio ou, ainda – como querem alguns mais fatalistas –, que somos hipócritas incorrigíveis. A incoerência, mesmo a mais pertinaz, prova apenas que a coerência que nos é natural pode ser corrompida se não for cultivada.
Como acredito na capacidade que o homem tem de viver aquilo que é bom e próprio da sua natureza – acredito mesmo que aquela moça do ônibus tinha capacidade de "encontrar-se em si mesma", e não numa personalidade fictícia – termino esse post com o otimismo poético de Julián Marías:
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